sexta-feira, novembro 26, 2004

Abstracção

Certa porção de abstracção melancólica pode ser tão útil como um narcótico em dose discreta, porque é uma coisa que adormenta as febres, às vezes renitentes, da inteligência em acção, e faz nascer no espírito um vapor brando e fresco, que corrige os contornos demasiado ásperos do pensamento puro, enche numa ou noutra parte lacunas e intervalos, liga os conjuntos e esfuma os ângulos das ideias. A muita abstracção, porém, submerge e afoga. Infeliz do operário de espírito que se deixa cair inteiramente do pensamento na abstracção. Julga que facilmente tornará a subir, e diz consigo que, afinal, ainda que não suba, é o mesmo. Erro!
O pensamento é o labor e a abstracção a voluptuosidade da inteligência. Substituir uma coisa por outra é confundir um veneno com um alimento.


Victor Hugo, in 'Os Miseráveis'

quinta-feira, novembro 11, 2004

Literatura(s)



José Eduardo Agualusa, o escritor angolano que anda quase sempre em viagem pelo mundo, lamenta-se por ter os seus livros espalhados pelas casas de amigos de vários países. O que o salva, já o ouvi confessar uma vez, é a Internet, que considera «a maior biblioteca do mundo». Agualusa não terá sido o primeiro a constatá-lo, e não será certamente o último. Já bem depois dele, o escritor escocês Andrew Crumey arranjou um simpático velhinho para aparentemente fazer igual descoberta, ainda que dentro do universo da própria ficção. É apenas o ponto de partida para este livro, O Insólito Mr Mee. O romance de Andrew Crumey faz-se de muitas histórias e de muitas (mas mesmo muitas) confusões que levam o insólito Mr. Mee, o tal velhinho, a descobrir o sexo e as drogas, entre outras coisas que parece ter dificuldade em perceber se são maiores ou menores. Mais histórias e mais confusões que houvesse e em nada ficaria a perder a escrita de uma das vozes seguras da nova literatura europeia. Um bocadinho do livro: «Seria impossível transmitir-lhe o fascínio do site que encontrei, se não tivesse acontecido o que aconteceu a seguir: a imagem continuou no meu ecrã, mas começou a refrescar-se - uma outra palavra que, entretanto, descobri; suponho que há aqui um uso impróprio, pois suponho que a origem é francesa e que tem a ver com a recuperação da saúde e do vigor através de um reforço alimentar. Só por uma extensão metafórica se pode associar isto à renovação espontânea da imagem que estava no meu ecrã, como se fosse uma bandeira a desenrolar-se, mostrando uma mulher deitada na tal cama, completamente nua. Num momento tinha à frente uma cama vazia e, no seguinte, a imagem imóvel de uma jovem nua, a ler um livro deitada na cama, com uma mão a apoiar a cabeça e a outra a segurar o livro. Fiquei muito intrigado por aquele fenómeno se designar por live video link. Para mim, live queria dizer que o acontecimento a que estava a assistir estava a acontecer naquele preciso momento; e quanto à palavra link, não pode ser latim, nem francês, nem grego. Suponho que deve ter uma ligação nórdica - podemos investigar isso noutra altura. Havia tanta coisa intrigante naquele fenómeno que abandonei a jovem na cama ainda antes de a imagem poder refrescar-se outra vez, e voltei ao simpático motor de busca para procurar mais exemplos de live video. Cheguei assim à descoberta verdadeiramente fascinante de um site que mostra a actividade de uma rua de Aberdeen, observada por uma câmara de segurança colocada do lado de fora de um banco. Quem poderia imaginar que seria possível ter acesso a um mundo tão detalhado, com a compra de uma caixinha (ou melhor, de três caixas) por menos de duas mil e quinhentas libras?»


[Texto retirado da página de António Manuel Venda, www.antoniomanuelvenda.com, Secção 'Crónicas - O Livro da Semana', 16.09.02 – 22.09.02
]

quarta-feira, novembro 03, 2004

A Busca da Verdade

A verdade é um ideal tipicamente jovem, o amor, por seu turno, um ideal das pessoas maduras e daqueles que se esforçam por estar preparados para enfrentar a diminuição das energias e a morte. As pessoas que pensam só deixam de ambicionar a verdade quando se dão conta que o ser humano está extraordinariamente mal dotado pela natureza para o reconhecimento da verdade objectiva, pelo que a busca da verdade não poderá ser a actividade humana por excelência.
Mas também aqueles que jamais chegam a tais conclusões fazem, no decurso das suas experiências inconscientes, um percurso semelhante. Ter consigo a verdade, a razão e o conhecimento, conseguir distinguir com precisão entre o Bem e o Mal, e, em consequência disso, poder julgar, punir e sentenciar, poder fazer e declarar a guerra - tudo isto é próprio dos jovens e é à juventude que assenta bem. Se, porém, quando envelhecemos, continuamos a ater-nos a estes ideais, fenece a já se si pouco vigorosa capacidade de «despertar» que possuímos, a capacidade de reconhecer instintivamente a verdade sobre-humana.


Hermann Hesse, in 'Elogio da Velhice'